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Aos 88 anos, poeta Augusto de Campos critica a “democracia meia bota”

A situação no país, resultante das últimas eleições, é retrógrada e catastrófica. A condenação do presidente Lula “não foi embasada em provas suficientes e convincentes, o que só por si já demandaria a sua anulação”. Todo esse processo revela “uma situação de excepcionalidade que fere fundo a democracia e a justiça em nosso país”. É o que afirma o poeta Augusto de Campos, em entrevista ao Tutaméia.

Augusto de Campos

Tradutor, ensaísta, crítico de literatura e de músico, ele está expondo seus trabalhos na Luciana Brito Galeria (Av. Nove de Julho, 5162, São Paulo) na mostra Poemas e Contrapoemas (até 18 de maio de 2019). Criador da poesia concreta – um movimento que fundou com seu irmão Haroldo e com Décio Pignatari nos anos 1950 –, Augusto de Campos ganhou, entre muitos outros prêmios, o Janus Pannonius (considerado o Nobel da poesia), o Pablo Neruda e o Jabuti. Aos 88 anos, segue inovando e produzindo.

Nesta entrevista, feita por correio eletrônico, ele fala do momento do país, de seu trabalho e sobre a poesia: “A poesia dá provas de ainda resistir, nas mais diversas formas, como um respiradouro contestatário à linguagem contratual e decretal, e, mesmo em suas variantes de baixo repertório, parece achar formas de corroer o tecido conservador que tenta dominar a liberdade e a evolução do ser humano”.

A seguir, a entrevista:

Tutaméia: O que o motivou a fazer a mostra Poemas e Contrapoemas neste momento? Qual o significado dela num contexto em que o governo atua contra a arte e a produção cultural brasileira?
Augusto de Campos: Precisamente, a oportunidade que me deram de expor, ao lado de obras que por sua própria linguagem desbordam do convencional, algumas outras — as que chamo mais especificamente de “contrapoemas” — que se arriscam à linguagem não poética e mais ainda à de inflexões políticas, o que é talvez a maneira mais difícil de fazer poesia. E, desse modo, mostrar o meu inconformismo com a atual democracia meia bota brasileira, decorrente das últimas eleições para a presidência do país, que considero retrógrada e catastrófica.

Tutaméia: O sr. tem feito “contrapoemas” criticando a situação do País. Por quê? O que são “contrapoemas” e por que fazê-los?
AC: Os “contrapoemas” referem-se, como eu disse, mais propriamente aos textos que utilizam uma linguagem pouco “poética”, distante não só da poesia como da prosa literária, algo que poderia encontrar o seu antecedente no Fonte de Duchamp, ou no Quadrado Branco de Maliévitch, e nas vanguardas do início do século 20, especialmente no futurismo e no dadaísmo, textos porém marcados pelo viés político e não apenas por uma negação de posturas convencionais do universo da arte. Inspiradas também, pela proposição de Maiakóvski – “sem forma revolucionária não pode haver poesia revolucionária” – que os poetas concretos acresceram aos seus manifestos, no Plano Piloto Para Poesia Concreta, de 1958.

Há artistas que são indiferentes ao ambiente social em que vivem. Não é o meu caso. Até Rilke, tido como um arauto do inefável em poesia, castigou os reis com a lepra e com a impotência em dois de seus mais cáusticos textos da série Novos Poemas, que traduzi. Continuo a empenhar-me em novas formas de expressar a linguagem poética tentando mantê-la viva e não meramente tributária de autores do passado. Mas me importam muito as injustiças sociais e a luta dos mais humanos e solidários em favor dos menos favorecidos, e não vejo como não expressar esse sentimento em muitos de meus poemas, ainda que evitando a retórica dos poemas panfletários. Pois, como entendia João Cabral de Melo Neto, um poeta ao mesmo tempo puro e engajado, a poesia é uma área linguística de expressão afetiva, por mais concreta, discreta e contida que seja.

Tutaméia: Alguns de seus contrapoemas, como Cláusula Pétrea e Lula Livre, são agudos manifestos. Pode comentá-los?
AC: Ambos integraram o livro Lula Livre/Lula Livro, organizado por Ademir Assunção e Marcelino Freire e publicado no ano passado. O poema Lula Livre relembra com uma palavra-valise o celebérrimo personagem de O Alienista de Machado de Assis, associando-o ao julgamento político do ex-presidente. Cláusula Pétrea é simples transcrição de inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal.

Na minha mostra, fiz questão de incluir este poema, até porque se anunciara novo julgamento do Supremo Tribunal sobre o tema da prisão após decisão de 2ª instância. Soube, depois, que o julgamento foi adiado, atendendo a pressão de setores que acreditam que uma decisão de 3ª instância, supostamente adversa ao ex-presidente, permitirá uma saída honrosa para a manutenção do seu confinamento, de sorte a parecer que o preceito constitucional foi cumprido. É mais uma fórmula enviesada de afrontá-lo, porque, como é evidente, ainda não é esta a última instância, e não estão esgotados todos os recursos a que tem direito o réu.

Tutaméia: Por que o sr. tem condenado o processo contra Lula? O sr. já disse que sua formação jurídica o qualifica a tratar do tema com segurança. Qual sua visão desse caso e do seu significado para o país?
AC: Como tenho proclamado em mais de uma oportunidade, e muitos juristas de relevo compartilham a mesma opinião, a sentença condenatória do ex-presidente não foi embasada em provas suficientes e convincentes, o que só por si já demandaria a sua anulação. Mas, ainda assim, a decisão de 2ª instância não só confirmou a sentença, como aumentou, sem qualquer justificativa, a pena que fora cominada. Ao ser a questão da legitimidade de prisão, em face do preceito da Constituição Federal, submetida ao Supremo Tribunal, decidiu este, em julgamento controvertido, por 6 x 5, a favor da permissibilidade (não obrigatoriedade) da prisão, que, no caso de Lula, foi fulminantemente decretada, também sem justificação. Ora, o preceito constitucional, conhecido juridicamente como Norma Pétrea por tratar de um dos direitos fundamentais da pessoa, é claro e insofismável: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Não pode ele ser alterado para minorar o direito em questão nem mesmo por votação qualificada do Congresso, admitindo modificação somente por nova Assembleia Constituinte. Trânsito em julgado só ocorre depois de última instância, e não de terceira, muito menos de segunda instância. Como é que alguns ministros do Supremo se podem sentir autorizados a contrariar o que está expresso em preceito de tal natureza? Mais ainda. Como é sabido, a maioria dos integrantes do STF mantinha opinião adversa à possibilidade de afrontar a proibição constitucional, e a votação só terminou empatada quando um dos seus integrantes mudou de posição, dizendo-se pessoalmente favorável ao cumprimento estrito da norma básica constitucional, mas alegando atender ao princípio da “colegialidade”, seja isto o que for, para amparar a contradição tão evidente quanto incompreensível do seu voto. O empate levou ao voto de Minerva da presidente do STF, que, como era sabido, pensava como os que defendiam a viabilidade da prisão após segunda instância… Na véspera, ocorrera insólita manifestação do Comandante do Exército, interpretada por muitos comentaristas políticos como forma de exercer pressão sobre o julgamento, que, se optasse pelo cumprimento da “norma pétrea” constitucional, determinaria a libertação do ex-presidente Lula. É preciso dizer mais? São fatos conhecidos de todos. E que revelam uma situação de excepcionalidade que fere fundo a democracia e a justiça em nosso país.

Tutaméia: Com mais de 70 anos de vida mergulhada na poesia, por que a poesia é tão necessária?
AC: Não sei dizer por que a poesia é tão necessária, nem sei se é, de fato, tão necessária no mundo de hoje, quando o crescimento da densidade populacional atinge tais patamares que a cultura parece diluir-se e rebaixar-se devido à desigualdade social e suas consequentes carências no plano da educação. Mas a verdade é que a poesia dá provas de ainda resistir, nas mais diversas formas, como um respiradouro contestatário à linguagem contratual e decretal, e, mesmo em suas variantes de baixo repertório, parece achar formas de corroer o tecido conservador que tenta dominar a liberdade e a evolução do ser humano. Nesse sentido, a internet é uma faca de dois gumes: permite a intrusão de banalidades e boçalidades, mas oferece, por outro lado, o acesso às informações as mais remotas e intangíveis para quem souber procurá-las. Pode ser a escarradeira dos imbecis, mas é também a enciclopédia das enciclopédias, pondo ao alcance de todos conhecimento e informação jamais oferecidos em tal escala.

Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos, os "pais" do concretismo, em foto de 1968


Tutaméia:
Sua poesia chega a quem você gostaria que chegasse? Por que isso ocorre?
AC: Não chegaria a dizer tal coisa. Quem lê A Divina Comédia, hoje? Quem lê os sonetos de Shakespeare, para só falar nas evidências canônicas mais consagradas? Nas universidades talvez haja espaço para lê-los. Eu diria que alguns autodidatas, além dos “altodidatas”… E sempre foi assim. Hoje, porém, temos a concorrência das grandes mídias e suas listas de best-sellers. Os poetas são “pest-sellers”, como dizia Décio Pignatari… Mas, para o bem ou para o mal, a internet aumentou o número de leitores e/ou visitantes de poesia, e os meus também. Os novos e mais acessíveis meios de produção também favorecem a poesia em novas formas de apresentação, além do livro, e com mais baixo custo. E a poesia insiste, resiste, transiste.

Tutaméia: Quais sentimentos prevalecem hoje? Raiva? Ódio? Rebeldia? Angústia? Depressão? Explosão?
AC: Olhem, essa é uma pergunta que as estatísticas jornalísticas gostam de responder. Mas não creio que se possa afirmar que esses sentimentos prevaleçam hoje na humanidade, ainda que a “crise das utopias”, de que já falava Oswald de Andrade pareça se agravar nos últimos tempos e induzir ao desânimo. Muito do que se reflete nesses sentimentos se deve à questão da comunicação moderna e sua influência sobre a credibilidade popular. O assunto é vasto. Não dá para responder em algumas frases. Mas, colocando a questão objetivamente em relação ao momento que atravessamos no Brasil, é óbvio que as grandes mídias, com a Rede Globo puxando o carro, tiveram uma boa parcela de influência nas respostas populares que levaram à atual sensação de descrédito e desamparo institucional. Deram, outra vez, uma de aprendiz de feiticeiro. Querendo livrar-se do PT, do Lula e da Dilma, tal como o fizeram com Jango Goulart, em 1964, demonizaram a tal ponto as suas vítimas, e prestigiaram, por outro lado, a tal ponto um de seus oponentes, inflando ambiguamente a sua personalidade caricata, que acabaram, mesmo sem o desejarem, contribuindo pesadamente para promover e eleger, por pequena maioria, a “caricatura” que criaram, contando com a irresponsabilidade de alguns líderes-vedetes de esquerda, que a dividiram. Reproduziram as mídias o que já haviam feito de 1964, quando todas as de maior poder de fogo apoiaram o golpe militar, para, depois, recompondo-se ao longo de 20 anos, tornarem-se, afinal, paladinas das “diretas já”. Infelizmente, a lição não foi aprendida, e, como na anedota do filme de Orson Welles, o escorpião direitista que criaram picou a rã medianeira no meio da viagem pelo oceano político e matou os dois…

Quem pagou a leviandade, porém, sem o entender direito, foi o povo brasileiro, a maior vítima inconsciente da campanha de ódio e de medo que a mídia criou em torno das forças políticas que, apesar de seus erros e equívocos, eram as mais progressistas do país. Entre nós, a história virou paródia da paródia. Voltaram os militares e um estado carola, conservador, punitivo e empresarial. Boi, bíblia e bala, como já se estigmatizou. E num país que tem mais filósofos que a Grécia e menos filosofia que a do Conselheiro Acácio, ninguém sabe onde se vai parar…

Tutaméia: Qual a sua rotina diária? O que o sr. está lendo, vendo? Como se informa?
AC: Afora as inter-relações humanas, amorosas e amicais, de que estou felizmente cercado, sou um “homo virtualis”. Com a muita idade que me coube, quase não saio de casa, com dificuldade de me locomover e de compartilhar de eventos que antes frequentava com prazer. Minha vida gira em torno do computador e das mídias digitais, onde sou, para o bem ou para o mal, muito solicitado. Estou, como dizia Maiakóvski, nos seus tempos, “em dívida com as cerejeiras do Japão e com os lampiões da Broadway”… Leio e releio muito, e traduzo poesia, que é uma forma conversar com os artistas que admiro.

Dois terços da minha atividade poética são dedicados à tradução. Para citar algumas das minhas leituras e publicações mais recentes, posso mencionar as novas traduções de Maiakóvski, Silvia Plath e Marianne Moore. Preparo uma plaquete com algumas traduções inéditas de Rimbaud. “Re-visei” Júlio Verne à luz de Mallarmé no ensaio Dados os Dados, publicado na revista on-line Circuladô, da Casa das Rosas.

De quando em quando, entro, para espairecer, na televisão, zapeando sempre quando caio nos noticiários políticos e seu coro de contentes e madalenas mal arrependidas… Um ou outro oásis — os novos canais como Arte 1 e Curta!, de alto nível cultural. Gosto mais da música popular americana, de fundo jazzístico, do que da atual brasileira, demasiado mimética e comercial em sua maioria. Gosto ainda mais da música contemporânea (erudita), muito mal servida entre nós, mas salva da extinção pelo YouTube, onde, se você souber, vai encontrar tudo o que a divulgação nacional escondeu, em 100 anos de ignorância, comercialismo e intimidação, com seu repertório massacrante de composições românticas do século 19, ditado pelo pavor da rejeição do público…

Tutaméia: O senso comum associa a velhice à fraqueza e ao desânimo. A sua poesia, aos 88 anos, vai contra essa visão estereotipada. Está cada vez mais vibrante e afiada. De onde saem as forças para a criação e o trabalho intenso?
AC: Não tenho pretensões maiores. Sou velho, fraco e desanimado. Faço o que posso fazer. E o que gosto de fazer. Enquanto posso fazer. Voltando a citar João Cabral: “melhor fazer do que não fazer”. E ele, um dos meus poetas preferidos, o fez até onde pode fazer. Na verdade sou um pessimista quanto ao futuro da humanidade. Para citar também o grande cientista Hawking, “a raça humana não tem um histórico muito bom de comportamento inteligente”. Mas se ele, o cientista, com o “handicap” de sua fragílima saúde e de seu pouco tempo de vida, conseguiu fazer o que fez, com otimismo e grandeza, por que eu, poeta, que fui ambiguamente premiado com esta estranha sobrevivência, não devo tentar fazer alguma coisa? Impressionou-me, no seu último livro, publicado postumamente, a passagem em que contradiz Einstein, afirmando que “Deus” não só joga dados, como é um jogador inveterado… Um poeta, sim, um poeta, um simples professor de escola, pouco respeitado pelos alunos, antecipou a “teoria dos dados” de Stephen Hawking. Foi Stéphane Mallarmé, que publicou em 1987 o livro-prefácio da modernidade poética: Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso.

Fonte: Tutaméia