O papel do Exército no atual processo político

As forças progressistas têm tentado interpretar o papel das Forças Armadas no atual processo político brasileiro. O Portal Vermelho publica o artigo a seguir com o objetivo de divulgar essa questão e ajudar na busca de esclarecimentos sobre esse importante tema. Intitulado “Exército deu ‘golpe branco’ pró Bolsonaro, eleito com ‘tática de guerra’, o artigo foi publicado no site da CartaCapital

Por André Barrocal

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Em seu primeiro ano no poder, Jair Bolsonaro antecipou os festejos do Dia do Exército, pois a data coincidiu com a Sexta-Feira Santa. Ele participou de duas comemorações, uma em Brasília, na quarta-feira 17, outra em São Paulo, no dia seguinte. O pessoal da farda verde mereceu o mimo. Sem o alto comando do Exército, talvez não estivesse no Palácio do Planalto o homem que um dia caiu em desgraça nos quartéis por insubordinação e por um plano de explodir bombas.

O Exército pavimentou a vitória de Bolsonaro com um “golpe branco”, ao emparedar o Supremo Tribunal Federal (STF) e impedir a liberdade do favorito na eleição, Lula. O “grande armador do jogo” foi o comandante do Exército em 2018, Eduardo Villas Boas. Teorias expostas pelo professor Eduardo Costa Pinto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no artigo “Bolsonaro e os quartéis: a loucura com método”, publicado no início de abril.

Vontade de interferir na política o Exército tinha. “Ao serem questionados acerca de posições políticas, os oficiais indicaram que o grau de influência política do Exército é pouco ou nenhum. Indicaram que desejariam ver o Exército com um grau de influência maior.” Constatações feitas por um major, Denis de Miranda, em entrevista com 643 oficiais, em 2012, para a tese de doutorado “A construção da identidade do oficial do Exército brasileiro”, lançada em livro em 2018.

O Exército então usou Bolsonaro para buscar o poder? Usou, disse a CartaCapital um general aposentado. “O Villas Boas deu um ultimato no Bolsonaro numa conversa: ‘Só temos você’”, conta o general. Tradução: só ele seria um candidato palatável para o que o Exército achava certo fazer no País. O assessor de Villas Boas responsável pelas análises políticas, coronel Adalberto Fonseca, era da opinião de que Bolsonaro não tinha chance de vencer.

Feito candidato, Bolsonaro fez uma campanha com táticas de guerra. Desorientou a opinião pública a partir das redes sociais da web (Whatsapp, Facebook). Estas foram operadas com várias subredes, sem um comando central, para que se uma falhasse, as demais continuassem. Uma “guerra híbrida” que só pode ter sido empregada com estratégia e inteligência militares, conforme teoriza desde a eleição, em entrevistas, Piero Leirner, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Já na Presidência, Bolsonaro nomeou mais oficiais do Exército (generais, coronéis) para cargos federais do que a ditadura (1964-1985). “Se o nosso governo falhar, errar demais – porque todo mundo erra –, mas se errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas. Daí a nossa extrema preocupação.” Palavras do vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado, em sua recente passagem pelos Estados Unidos.

Ao empossar o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, em janeiro, Bolsonaro reconheceu enigmaticamente quem merecia. “Meu muito obrigado, comandante Villas Boas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui.” Hoje Villas Boas é assessor no Planalto. Ao deixar o comando da tropa, disse ao presidente: “O senhor traz a necessária renovação e a liberação das amarras ideológicas que sequestraram o livre pensar”.

As palavras do general ajudam a entender por que o Exército uniu-se a Bolsonaro. Para eles, o “politicamente correto” avançou demais no Brasil. A esse “politicamente correto” a alta oficialidade chama de “marxismo cultural”. De “comunismo”. É uma das teses apresentadas por Costa Pinto, professor do Instituto de Economia da UFRJ, no texto “Bolsonaro e os quartéis”.

Segundo ele, os militares veem desde o fim da ditadura uma “revolução gramsciana”, alusão ao filósofo marxista italiano Antonio Gramsci, pregador da ideia de que a esquerda deveria primeiro conquistar as mentes das massas, através da cultura, para chegar ao poder depois. A síntese da visão da caserna, diz Pinto, é a obra de um general morto em 2011, Sergio Augusto de Avellar Coutinho, autor em 2002 do livro “A Revolução Gramscista no Ocidente”.

Para Coutinho, o socialismo estava em curso no Brasil desde 1994, com a eleição de FHC. Ele escreveu que “os movimentos alternativos e de minorias são estimulados ou mesmo criados pelas organizações de esquerda revolucionária como componente auxiliar da luta de classes e como elemento ativo da ‘desconstrução’ da família tradicional e dos valores da civilização ocidental cristã”. E via no País uma “aceitação passiva do que se estabeleceu ser ‘politicamente correto’”.

Esses pensamentos ecoam nos generais bolsonaristas. Em janeiro, na GloboNews, Augusto Heleno, chefe do GSI, o órgão de espionagem do governo, comentou: “Nós beiramos (o socialismo), “estivemos bem próximo disso acontecer, só que faziam uma máscara para fingir que não era”. “Vivemos um momento em que faltam fundamentos éticos e no qual o ‘politicamente correto’, por vezes mal interpretado, prejudica nossa evolução”, disse Villas Boas à Folha em julho de 2017.

Para Costa Pinto, as manifestações públicas do general quando chefe do Exército, de 2015 a 2018, mostram que Villas Boas impediu um “golpe clássico”, uma quartelada, com sua pregação de legalidade, de resolução eleitoral dos problemas do País. Mas foi “o grande armador” do “golpe branco” que levou Bolsonaro ao poder, ao agir para alijar Lula do páreo.

Na véspera de o Supremo decidir sobre a soltura de Lula, em abril de 2018, Villas Boas ameaçou o tribunal via Twitter. “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

O general praticamente reconheceu a ameaça, em entrevista à Folha em novembro de 2018. “Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática.”

Costa Pinto não menciona em seu texto, mas houve mais duas ações, digamos, eleitorais de Villas Boas. Quando o comitê de Direitos Humanos da ONU defendeu a candidatura de Lula, o general reagiu no Estadão: “Tentativa de invasão da soberania nacional”. Um mês depois, por indicação dele, Azevedo e Silva era nomeado assessor especial do presidente do STF, Dias Toffoli, no que pareceu tutela da corte, conforme impressão de um funcionário do juiz.

Autor do livro “Antropologia dos militares”, Piero Leirner, da UFSCar, adiciona outros elementos à explicação de por que os quartéis aderiram ao ex-capitão. Um é o mal estar dos quartéis com Dilma Rousseff e PT devido à Comissão Nacional da Verdade.

O relatório da CNV ficou pronto em dezembro de 2014, mas já se sabia o que viria. Um mês antes, Bolsonaro foi a um evento a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e teve uma recepção para lá de entusiasmada por parte dos alunos aspirantes a oficiais. Gritos de “líder, líder”. Bolsonaro comentou: “Nós temos que mudar este Brasil, tá ok? Alguns vão morrer pelo caminho, mas eu estou disposto em 2018, seja o que deus quiser, tentar jogar para a direita esse país.”

“Além das questões que dizem respeito à Comissão da Verdade”, afirma Leirner, “houve também um certo problema que por eles (militares) foi identificado como uma aproximação ou alinhamento à Russia e China, com possibilidade de dependência desta última.” O que ajuda a entender o casamento de Bolsonaro com Donald Trump e os Estados Unidos.

Agora que está no poder, aonde chegou do jeito que chegou, será que o Exército cairá naquela tentação autoritária que desembocou no golpe de 1964? “Crescem na prática os sinais de um Estado militar e policialesco no Brasil. Tiros, armas, a ideia falsa de que somente militares nos salvarão, violência e ódio para todos os lados, o suposto horror à ‘velha política’, disse o governador do Maranhão, Flávio Dino, no Twitter em 16 de abril. “Receita que pode conduzir a uma ditadura aberta.”