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Rainer Maria Rilke: Como brota um verso 

Nascido em Praga, na República Tcheca, Rainer Maria Rilke (1875-1926) foi um dos grandes poetas de língua alemã no século 20. No Brasil, sua obra mais conhecida é Cartas a um Jovem Poeta, publicado em 1929, após a morte de Rilke. Mas o trecho que o Prosa, Poesia e Arte publica a seguir, nos marcos do Dia Mundial da Poesia (21 de março), foi extraído de outro livro do autor, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (1910). Leia abaixo Como brota um verso.

Como brota um verso - Bárbara Gael
Como brota um verso

Por Rainer Maria Rilke

Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo?! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e, se possível, durante uma longa vida — e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons.

Porque os versos não são, como imaginam as pessoas, simples sentimentos… Eles são experiências. Para escrever uma única linha, um simples verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitas pessoas e muitas coisas; é preciso conhecer os animais, sentir como os pássaros voam nos céus e perceber o movimento de uma flor que se abre pela manhã.

É preciso evocar caminhos por regiões desconhecidas, em encontros inesperados e separações longamente previstas; em dias da infância ainda não esclarecidos; nos pais que tivemos de magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro); em doenças de infância que começam de maneira tão estranha, com tantas transformações profundas e graves; em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar; no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros — e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto.

É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra; de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado junto a um morto numa casa de amplas janelas abertas e aos ruídos que vinham por acessos.

Mas não basta ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso revestir-nos de paciência infinita até que regressem à mente. Pois essas mesmas recordações ainda não são tudo de que é preciso. E só quando chegarem a fazer parte de nossas entranhas, quando se converterem em aspectos e gestos de nosso ser, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos — só então é que pode suceder que, numa hora muito rara e estranha, façam surgir a primeira palavra dum verso que brota.