Qual a visibilidade de trans e travesti que queremos

Ser travesti, mulher trans ou homem trans no país do mundo que mais mata esses segmentos é resistir ao ódio, à intolerância, à ignorância e lutar por uma sociedade mais equânime entre os gêneros, respeitando-os e compreendendo que é legítimo existir e transformar.

Por Sílvia Cavalleire e Rodrigues Lima*

Dia 29 Visibilidade Trans

O dia 29 de janeiro é o Dia Nacional da Visibilidade Trans e Travesti, data criada em 2004 pelo Ministério da Saúde, simultaneamente ao lançamento da campanha "Travesti e Respeito", em reconhecimento à dignidade dessa população. Ano após ano, as travestis, as mulheres trans e os homens trans têm lutado por pautas como nome social, reconhecimento das identidades de gênero, redução dos altos índices de homicídios brutais e por nenhum direito a menos. No entanto, não temos a resposta para uma pergunta essencial: qual a visibilidade trans e travesti que queremos?

O Brasil é o líder mundial de violência contra transgêneros. Entre janeiro de 2008 e dezembro de 2014, foram registrados 1.731 homicídios (Fonte: Senado Federal). O preconceito, somado às agressões físicas e emocionais, reflete em marcas profundas nas nossas vidas. A nossa expectativa de vida, de acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) é de 35 anos. A média nacional da população em geral, segundo dados do IBGE é de 75,5 anos. Sofremos com a carência de políticas públicas específicas para o exercício da nossa cidadania e com as mais diversas exclusões sociais: a expulsão do seio familiar, a evasão escolar, as limitadas oportunidades no mercado de trabalho, sem mensurar as dificuldades nos relacionamentos interpessoais.

 

Após 28 anos, a Organização Mundial da Saúde – OMS, em uma nova edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID, desclassificou a transexualidade como doença mental caracterizada por "transtorno de identidade de gênero". Este, sem dúvida, foi um grande salto para o reconhecimento e respeito para com travestis e transexuais e a garantia da sua cidadania.

Dandaras vivem

Em março de 2017, o mundo inteiro ficou chocado com a divulgação do vídeo do homicídio da travesti Dandara dos Santos, em Fortaleza, no Ceará. Os requintes de crueldade durante seu espancamento, o deboche dos seus assassinos e de pessoas que assistiam sem interferência, finalizado com o transporte do seu corpo já brutalmente violentado em um carrinho de mão chamaram a atenção de quem ainda permanecia indiferente à violência indiscriminada contra a população LGBT e demais identidades. O assassinato da travesti impulsionou uma visibilidade trans e travesti que era necessária, mas que não era nem de longe a que gostaríamos. Não queríamos que a sociedade nos enxergasse como seres humanos a partir de um episódio de retirada da humanidade entre uma de nós.

O projeto de lei PL 7292/2017, ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, de autoria da deputada federal cearense Luizianne Lins (PT) pretende ser intitulado Lei Dandara dos Santos, o qual altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o LGBTcídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o LGBTcídio no rol dos crimes hediondos. Uma justa homenagem, para que jamais esqueçamos de uma mártir entre tantas de nós. As Dandaras, Sílvias, Danis, Millenas, Marianas, Natashas, vivem e querem viver!

Abrigo Thadeu Nascimento

Também é de Fortaleza, Ceará, o primeiro abrigo para pessoas trans em situação de vulnerabilidade social: o abrigo Thadeu Nascimento. O nome homenageia um jovem homem trans baiano que também foi brutalmente assassinado em maio de 2017. O abrigo, fundado pela ATRANSCE – Associação Transmasculina do Ceará, resistiu por nove meses apenas com doações da população cearense e pela força de trabalho das mulheres trans e travestis e dos homens trans que lá moraram, até julho de 2018. Uma proposta de convênio entre o abrigo e a Prefeitura de Fortaleza foi aprovada por unanimidade pela Câmara dos Vereadores do Município, que deve possibilitar a reabertura do local em breve. Esta é uma visibilidade trans e travesti que queremos.

Viagem solitária

João W. Nery foi, com certeza, o homem trans mais conhecido do Brasil por várias décadas. O psicólogo escreveu uma autobiografia intitulada Viagem Solitária, que narra a infância triste e confusa do menino tratado como menina, a adolescência transtornada, iniciada com a 'monstruação' e o crescimento dos seios, o processo de autoafirmação e a paternidade. O grande João foi o primeiro transmasculino a realizar cirurgia de redesignação sexual do nosso país e atraiu uma importante visibilidade para os homens trans, até pouco tempo atrás desconhecidos pela mídia e pela sociedade brasileira.

Nery faleceu em 26 de outubro do ano passado, em decorrência de um câncer de pulmão que atingiu seu cérebro. Em seus últimos dias, fez um apelo nas redes sociais. O escritor pediu para que os homens trans continuassem a luta, que se unissem e deixassem de excluir os outros, o que a transfobia já faz diariamente. “Um transmasculino não precisa ser sarado, nem ter barba, nem se hormonizar ou ter pênis e se operar. Basta saber quem são e que se sentem do gênero masculino. Vamos nos respeitar, nos unir, nos fortalecer e, sobretudo, ensinar aos homens cis o que é ser um homem sem medo do feminino.”, disse.

Recentemente, o personagem Ivan da novela A Força do Querer, enquanto transmasculino, fez boa parte do país inteiro compreender de forma didática os processos da transição de gênero enfrentados pela população T. O público da novela e, até mesmo quem não acompanhava, torceu pela felicidade do personagem. Esta é uma visibilidade trans e travesti que queremos para os muitos Joãos, como Rodrigues, Rogers, Dioniso, Kaio, Apolo, entre tantos.

TRANSformando a dor em luta

No Brasil, há grandes entidades que organizam especificamente as travestis, as mulheres trans e os homens trans. Estamos falando da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, FONATRANS – Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidade, entre outras. Essas entidades são cada vez mais importantes para o empoderamento desses segmentos, realizando pesquisas e gerando estatísticas relevantes que o próprio Estado brasileiro ainda tem dificuldade em elaborar. Segundo a ANTRA, por exemplo, cerca de 90% das mulheres travestis e transexuais estão na prostituição informal, entre outros subtrabalhos. Também notifica que, no ano de 2018, ocorreram 163 assassinatos de pessoas trans, sendo 158 travestis e mulheres transexuais, 4 homens trans e 1 pessoa não-binária. Destes, apenas 15 casos tiveram os suspeitos presos, o que representa 9% do total.

Reforçamos, enquanto UNALGBT, a necessidade de entidades como essas existirem e continuarem resistindo, transgredindo e transformando nossa dor em luta por mais direitos e mais respeito. Essa também é uma visibilidade fundamental que queremos.

Avanços nas políticas públicas

O Processo Transexualizador do SUS no Sistema Único de Saúde foi instituído por meio da Portaria nº 1.707/GM/MS, de 18 de agosto de 2008 e da Portaria nº 457/SAS/MS, de 19 de agosto de 2008. Estas portarias estavam pautadas na habilitação de serviços em hospitais universitários e na realização de procedimentos hospitalares. Esse conjunto de ações deveriam existir em todos os estados da nação, garantindo o acesso à Saúde por parte de toda a população trans brasileira. No entanto, menos da metade dos estados possuem os serviços mencionados nas portarias do Processo Transexualizador do SUS.

Um ano antes da morte de Dandara, a presidenta Dilma Rousseff assinou o Decreto N° 8727, de 28 de abril de 2016, que reconhece o nome social e a identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais. Um enorme passo do Estado brasileiro, mas que por não estar sob a forma de lei, sofre constantes ameaças de anulação. Ainda neste mês de janeiro, o governador eleito em Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), vetou um projeto de lei de reconhecimento do nome social de travestis e transexuais em serviços públicos catarinenses, de autoria do deputado estadual César Valduga (PCdoB-SC), o que provocou mobilizações em todo o país.

Recentemente, os movimentos sociais pressionaram pelo arquivamento do Escola Sem Partido, ou Escola Com Mordaça, em cujas diretrizes incluíam a limitação do debate de gênero nas escolas, criminalizando as identidades trans sob a caracterização de "ideologia de gênero", um termo cunhado por movimentos fundamentalistas religiosos para agravar o preconceito contra a população trans.

Já mencionamos o projeto de lei Dandara dos Santos, que encontrou dificuldades para sua tramitação na Câmara dos Deputados devido ao cenário conservador construído pela última legislatura. Acreditamos que, a partir da próxima legislatura, que se inicia em breve, possamos dar mais esse passo e transpor barreiras que já deveriam ter sido superadas contra a violência às pessoas trans.

Seremos resistência

Expressamos vigorosamente nossa pressa e nossa urgência de vivermos. Nesse momento em que afirmam que "meninos vestem azul e meninas vestem rosa" não só deturpam nossas pautas, como incentivam o ódio e a intolerância à nossa existência. Nosso sangue tem manchado os discursos da atual presidência da república, das casas legislativas federais, estaduais e municipais, bem como os altares de muitas igrejas lideradas por fundamentalistas inescrupulosos, que pregam a segregação e a discriminação. Nosso sangue reúne muitos assassinos.

Queremos um basta em nossas mortes. Não queremos mais mortes brutais como a da travesti Quelly da Silva, cujo coração foi arrancado e colocada a imagem de uma santa no lugar. A mídia divulgou muito mais o seu nome civil, que o seu nome social. Nem o direito à identidade que a vítima preferia foi respeitado. Essa violência até após a morte mostra o quanto se despreza as vidas de transgêneros.

Nossos direitos não são privilégios. Temos direito à vida, a uma família, à Saúde, à Educação, à segurança, a trabalhos dignos e oportunidades iguais como todas e todos. Não existirá uma sociedade mais justa e equânime sem as liberdades de identidade de gênero e de orientação sexual.

Hoje, falaremos para o mundo que estamos nos fortalecendo, em meio às animosidades ocorridas neste momento político e cultural do nosso país, mas que permaneceremos em festa, sem soltar a mão de ninguém, e em protesto contra o ódio, a corrupção, a hipocrisia, o fundamentalismo e principalmente contra a transfobia.