Fernando Pessoa: Contista em desassossego

Em pedaços de texto, anotações difusas, frases e esboços, o caráter fragmentário é uma das marcas da escrita ficcional de Fernando Pessoa. Sua extensa obra, em prosa e em verso, acumula mais de 25 mil textos, parte deles descobertos em dezembro de 1935, no seu apartamento em Lisboa, poucos dias após sua morte.

Fernando Pessoa - Divulgação

Embora menos conhecidos, os contos do escritor português aprofundam o enigma e a genialidade em torno de sua obra. Desta vez, eles compõem uma antologia recém organizada pela Editora Nova Fronteira, que lança um olhar especial sobre o autor disperso entre os heterônimos que criou em torno de si.

O banqueiro anarquista e outros contos escolhidos reúne 24 textos produzidos entre 1907 e 1935, dos quais 19 são inéditos no Brasil. A seleção também inclui três traduções de Fernando Pessoa para os contos do escritor americano O. Henry. Desde a prosa curta de No jardim de Epíteto (conto filosófico sobre a mensagem epicurista de um "mestre" sobre a vida e a natureza) até o conto policial de O roubo da quinta das Vinhas, o texto ficcional de Fernando Pessoa percorre caminhos distintos e desafia limites estruturais e temáticos de sua época.

"Além do despojamento da linguagem e da rara presença dos diálogos, os seus contos também se (re)formam na dimensão do fragmentário, do inconcluso", explica Maicon Araújo, professor de Teoria da Literatura da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

A presença do inacabado se manifesta ao longo de diversas páginas da antologia, na qual o leitor tem a possibilidade de esbarrar em notas, omissões deixadas pelo autor, dentre algumas palavras pouco usuais, além de numerosas variantes da língua portuguesa registradas por Pessoa, aprofundando a incógnita que ronda os textos do escritor lisboeta.

Para Maicon, o conto policial é apenas uma faceta que compõe a multiplicidade temática da ficção de Pessoa. "Seus textos mascaram verdades que operam o dizer da própria ficção em seu processo criativo. O mesmo autor se confunde com os narradores, com os pensadores, com os investigadores que compõem suas histórias e quase-histórias", pontua. Por esses enredos, se entranha a mesma ânsia presente em quase toda a obra de Pessoa: a vida acontecendo, fingida e vivida. As máscaras, por assim dizer, são uma condição da própria potencialidade artística do "poeta fingidor", autor dos conhecidos versos de Autopsicografia.

Pessoa não se limitou a criar heterônimos poéticos (como o futurista Álvaro de Campos, o racional Ricardo Reis ou o rústico e ingênuo Alberto Caeiro). Ele também inventou outros personagens ? em prosa ?, como um banqueiro "consciente e convicto" do conto O banqueiro anarquista. Para Maicon, nesse texto se vê "um Pessoa de teorizações políticas, filosóficas e psicológicas", que passeia por uma narrativa cujos acontecimentos não criam uma história concisa capaz de "sequestrar" o leitor, mas sim um longo diálogo à maneira platônica que pretende (re)elaborar um conceito – neste caso, o de anarquismo", explica o professor.

O poeta e pesquisador Alexei Bueno assina a introdução da coletânea, que mantém, logo após o texto traduzido, a versão original de A very original dinner, texto escrito quando Fernando Pessoa tinha 19 anos. Com doses de humor negro que beira o fantástico, o texto traduz o pleno domínio da narrativa que o escritor exibia desde a juventude. Seja em seu tom meditativo, seja na profundidade narrativa, o que sobressai na escrita pessoana é a intenção reflexiva, esotérica e misteriosa, que se mistura à tessitura particular de todos os seus contos.

Teatro Estático

Com edição de Filipa de Freitas e Patricio Ferrari, o livro Teatro Estático reúne pela primeira vez a face de dramaturgo do poeta Fernando Pessoa, no qual se inclui a peça O Marinheiro. Com a publicação desta peça de teatro, em 1915, Pessoa apresentou também um novo gênero dramatúrgico criado por ele, que recebeu o nome de teatro estático. Apesar de O Marinheiro ser o exemplo mais conhecido, o texto revela que o poeta português trabalhou em muitas outras peças do mesmo gênero – sem haver terminado nenhuma delas. A maioria permanecia inédita até a publicação do livro, em 2017.

Argumentos para filmes

Uma cuidadosa pesquisa pelo espólio de Fernando Pessoa, incluindo sua biblioteca pessoal, mostrou que o escritor português não só escreveu argumentos para filmes, como também sonhou criar uma produtora. O trabalho de organização e pesquisa dos editores Patricio Ferrari e Claudia J. Fischer resultou no texto Fernando Pessoa – Argumentos para Filmes", lançado em 2011 pela Editora Ática. No volume, toda esta história do pouco conhecido fascínio de Pessoa pelo cinema é descrita com pormenores em seis argumentos cinematográficos incompletos, provavelmente escritos ainda na época do cinema mudo.

O escritor e o enigma

Os primeiros textos de ficção de Fernando Pessoa apareceram em "jornaizinhos" manuscritos da sua adolescência. É em 1902, no nº 5 do jornal O Palrador, que surge o Dr. Pancrácio, personalidade literária de estreia da ficção pessoana, como lembra a escritora Ana Maria Freitas. Na ocasião, ele apresenta um pequeno conto da sua autoria, intitulado Desapontamento. Outros títulos continuaram a surgir depois, bem como os heterônimos criados com a função de assumir sua autoria – David Merrick, Charles RobertAnon, Alexander Search, Pêro Botelho, Bernardo Soares, dentre outros.

Durante sua trajetória na prosa e no verso, Fernando Pessoa criou mais de setenta heterônimos – e essa diversidade é uma das facetas exploradas com mais afinco por pesquisadores, críticos e leitores de tantas gerações posteriores que se debruçam sobre sua obra. Para o escritor Massaud Moisés (1928 – 2018), que se dedicou ao estudo da literatura pessoana, ele "é dos casos mais complexos e estranhos dentro da literatura portuguesa, tão perturbador que somente o futuro, quando de posse de toda a sua produção, virá a compreendê-lo e julgá-lo como merece", declarou.

O estudo de Massaud Moisés resultou na coletânea de ensaios intitulada Fernando Pessoa: o Espelho e a Esfinge, de 1988, que descortina e lança questionamentos sobre alguns aspectos menos conhecidos da produção literária do escritor lisboeta. Considerado referência indispensável para todos os estudiosos e leitores de Pessoa, o livro explora a controversa questão dos heterônimos, além de investigar os fundamentos estéticos da sua obra ficcional e sua potência do "mascarar criador".