A rainha do soul cantou orgulho

A voz poderosa da rainha do soul cantou pelo orgulho negro. Aretha Franklin morreu aos 76 na última quinta-feira (16), mas deixa um repertório que atravessou gerações; e o gênero musical que ela cantou já representa, em si, cultura de resistência

Por Alessandra Monterastelli *

Aretha Franklin

Aretha Franklin cantou pelo orgulho negro, pelos direitos civis dos afroamericanos em um momento de violência e injustiça. Usou sua voz para empoderar mulheres, como em sua versão de “Respect”, de 1967, que denúncia a opressão sexual e relacionamentos abusivos. "Eu não imaginava que minhas músicas se tornariam hinos para as mulheres. Mas fico muito feliz", disse ela à revista Time em setembro de 2017.

Pagou a fiança da lendária ativista e pantera negra Angela Davis, em 1970. Seu pai era amigo de Martin Luter King e um pastor que pregava a religião com afirmação negra.

Em 1968, lançou o álbum "Lady of Soul", considerado uma obra-prima; depois dele, ficou conhecida como a rainha do soul. “Ela fez a salvação parecer erótica”, descreveu o escritor Albert Goldman para o New York Times, fazendo menção ao soul como dissidência também do gospel. Aretha interpretava de forma intensa, mas também sensual, como descreveu Camilo Rocha para o Nexo Jornal. 

 



Do blues ao soul

O soul, que marcou a era da luta pelos direitos civis, é um gênero musical norte-americano que nasceu do blues no final da década de 1050 e início de 1960. Para entender melhor as origens do blues e sua cultura de resistência, o artigo escrito por Marcos Sorrilha Pinheiro, professor e doutor pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Fred Maciel, mestrando na UNESP, intitulado o “Blues: Manifestação e inserção sociocultural do negro no início do século XX”, publicado na revista Outros Tempos, pode ajudar.

Os professores contam como o blues nasceu nas canções entoadas durante o trabalho nas plantações de algodão no sul dos Estados Unidos, como uma manifestação cultural e social própria do negro diante da segregação e da situação opressora vivida durante a escravidão. O surgimento do blues estaria relacionado com as táticas criadas por negros como forma de sobreviver à estratégia estabelecida pela ordem político-econômica vigente. “Relatando temas cotidianos e fantasiosos, as canções de blues, bem como seus cantores (os bluesmen), foram um importante passo na representação e na consolidação de uma cultura afro-americana (..) cultura esta que até hoje tem seus espaços consolidados na sociedade estadunidense”.

O artigo defende que o papel do escravo na formação da própria cultura americana não é passivo como muitas vezes é proposto (versão em que o branco “americaniza” o negro oprimido); pelo contrário, o blues é uma representação e ferramenta cultural de afirmação do negro diante da sociedade colonial e uma forma de se introduzir nesta. Os professores citam uma frase do jornalista e músico Roberto Muggiati, que apesar de classificarem como um tanto poetizada e dramática, ilustra a origem de resistência desse gênero musical: “O blues nasceu com o primeiro escravo negro na América”.

O artigo retoma com mais detalhes as origens do blues. A grande presença de escravos na região sul dos EUA (onde estavam a maioria das plantações de produtos como o algodão, por exemplo), fez com que fossem criadas leis a fim de evitar qualquer tipo de ajuntamento ou reunião de escravos africanos- já que os senhores muito temiam possíveis revoltas. A proclamação de independência na metade do século 18 não mudou a situação, uma vez a liberdade era apenas para os brancos colonos.

Segregado socialmente e impossibilitado de se defender, diante dos preconceitos sugeridos por seus senhores, o negro adotou várias formas de resistência, entre elas a criação de uma estrutura cultural que valorizava elementos relacionados à sua origem étnica e se diferenciava daquela estabelecida pelos seus senhores. “Reforçou sua maneira de pensar, de sentir e de se relacionar com o sagrado, retomando aspectos culturais que sua memória africana ainda guardava. Resistir não é apenas rebelar-se e romper com o poder dominante, mas também pode ser configurado em ressignificações da própria estrutura de poder, permitindo a introdução de novas formas de sociabilidade dentro da mesma”.

Como alternativa ao sofrimento (desmantelamento familiar e liberdade cerceada), os negros reelaboraram a cultura que traziam consigo, de maneira especial a música. Estava aberto um rico campo de influências culturais que marcaria profundamente a história dos Estados Unidos, e o blues é um grande exemplo, segundo os professores.

Eles lembram também que os Instrumentos musicais eram proibidos aos escravos, portanto a voz se apresentava como o único e principal instrumento musical do negro e meio de expressão de suas tradições. Foram utilizados instrumentos dos senhores brancos, mas de outra maneira. Os brancos tentaram abolir os instrumentos de menção africana, mas os escravos negros estabeleceram táticas que subvertiam a lógica do dominador tocando seus instrumentos de maneira distorcida.

A música encontrou, então, espeço no único ambiente de convivência coletiva: os campos, isto é, no trabalho. Enquanto colhiam, ceifavam, plantavam, canções eram entoadas para amenizar o ritmo duro. Os “field hollers” (“música dos campos”), eram cantadas pelos escravos para tornar o trabalho menos maçante. Enquanto uma voz entoava um verso, o coro era feito pelos outros trabalhadores; inicialmente as canções eram entoadas em línguas africanas, e posteriormente ocorreu uma mistura com palavras em inglês: “uma manifestação quase primitiva, mas extremamente sentimental e sempre rítmica”.

O artigo conta que gritos também configuravam uma forma de comunicação entre os negros nos campos do sul estadunidense, e muitas canções evoluíram a partir deles. Os gritos e cantos eram ouvidos também nas cidades, onde o anúncio de produtos e serviços era feito por vendedores ambulantes negros. A raiz do cantor de blues estaria vinculada à tradição do chamado “griot”, “uma espécie de músico africano que, por meio de sua voz, exercia uma função religiosa e social nas tribos da costa ocidental da África, de onde eram provenientes grande parte dos negros escravos da América”.

O blues nasceu como resposta às segregações sofridas, e igualmente como uma manifestação cultural própria, necessária no cotidiano de toda sociedade, misturando gritos, canções de trabalho e de ninar e hinos religiosos; tornou-se, assim, a principal forma de expressão do negro americano, segundo Roberto Muggiati.

O gênero musical se consolidou como tal só no século 20. O primeiro blues data de 1912, “The Menphis Blues”, de W.C. Handy. Depois, em 1914, veio “St. Louis Blues”, um dos mais famosos até hoje.

Com a era da comunicação em massa criou—se o blues urbano clássico. O primeiro registro fonográfico de um blues ocorreu em 1920, com a gravação de Crazy Blues por Mamie Smith. “O êxodo das populações negras do sul para as grandes cidades do norte, como Chicago e New York, fez com que o blues experimentasse outra inovação: o início da revolução tecnológica”. Como conta o artigo, estima-se que em 1920, na cidade de Chicago, aproximadamente 110 mil negros faziam parte da população, dos quais mais de 90 mil tinham origem em outro estado, principalmente do sul; os motivos para tal efeito teriam sido a crise econômica, as pragas do algodão, os acidentes naturais e o desenvolvimento dos meios de transporte. Além disso, a Primeira Guerra Mundial demandou uma mão-de-obra suplementar na região norte dos EUA. Cidades mais industrializadas, além do progresso da indústria musical, permitiram o sucesso dos “bluesmen” (“homens do blues”).

Aretha carregava em sua voz toda uma história de resistência cultural, de criação musical poderosa. Não poderia deixar de ter muito orgulho.