A volta dos homens-caranguejo

Entre os anos 1930 e 1970, o médico, cientista social e escritor pernambucano Josué de Castro, falecido em 1973, na França, onde ficou exilado em função das sanções impostas pela ditadura militar brasileira, lutou bravamente pela erradicação da fome. Dizia que o fenômeno da fome tinha chegado aos seus olhos por meio dos mangues, ao longo do rio Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife.

Por Fabianna Freire Pepeu*

ilha de deus

Dois de seus livros mais famosos, Geografia da Fome e Homens e Caranguejos, inspiraram o Manguebeat, que ganhou notoriedade nacional e internacional com Chico Science nos anos 1990.

Em 2008, ano do centenário de nascimento desse escritor e crítico contundente das desigualdades brasileiras, a repórter Ciara Carvalho e o fotógrafo Arnaldo Carvalho (prêmio Esso por um dos trabalhos dessa reportagem), do Jornal do Commercio, percorreram, a partir da capital pernambucana, 10 mil quilômetros, passando pelos nove estados nordestinos. Dessa viagem, trouxeram um caderno intitulado Feridas Abertas da Fome.

Ao ler a reportagem, meu corpo se retorceu. Era impossível ficar imune, por exemplo, às histórias das crianças cegas de um ou mesmo dos dois olhos por desnutrição. Crianças que raramente bebiam leite, mas garapa – uma mistura de água com farinha. A tríade dor, desespero, desesperança, presente nos relatos das mães das crianças, é tatuagem indelével.

Agora, a Pública, uma agência de jornalismo investigativo, traz entrevista com o economista Francisco Menezes, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), na qual o pesquisador, que também é especialista em segurança alimentar, afirma que o Brasil deve mesmo voltar – conforme anunciado ano passado – ao Mapa da Fome da FAO, organização da ONU que trabalha a questão da alimentação e agricultura.

Um conjunto de políticas públicas implantadas nos governos Lula e Dilma – desde políticas de caráter macroeconômico, que contemplavam correção do salário mínimo acima da inflação, beneficiando não apenas o assalariado, mas a economia local; formalização do trabalho, bem como, entre várias outras ações, o Bolsa Família, transferência de renda tão duramente criticada por quem mora muito longe da miséria e não sabe o que é uma garapa – levaram o Brasil a sair, em 2014, desse tenebroso mapa.

Mas o golpe, mantido sem a menor decência pelo judiciário, com o apoio sistemática da grande mídia, na mesma velocidade em que sucateia o país, também nos obriga a lembrar dos caranguejos que andam sempre para trás.

E, na noite que ninguém sabe ao certo quando acaba, escuto com clareza a voz de Chico, em Da Lama ao Caos:

“Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça.”

* Fabianna Freire Pepeu é jornalista. Trabalhou como repórter no Jornal do Commercio e TV Globo, no Recife, e na TV Cultura, em Brasília. Atualmente, mora em São Paulo.