A revolução dos cravos vermelhos

O 25 de Abril de 1974 será para sempre uma data maior na História de Portugal e a epopeia das conquistas de Abril ficará para sempre gravada na memória coletiva.

Por Manuel Guerreiro

Cravo Portugal - Foto: AbrilAbril

Até então, vivia-se num País cinzento, triste, remendado, onde tudo era censurado e proibido: as professoras primárias e enfermeiras não podiam casar; o biquíni era perseguido nas praias; as senhoras na missa não podiam levar os braços descobertos; para usar um isqueiro era preciso uma licença; os jornais, livros, filmes, peças de teatro, canções e músicas tinham de passar pela censura, eram cortados e proibidos.

Aliás, o regime fascista tinha uma particular atenção e zelo em evitar que a informação e a Cultura circulassem, porque sabia serem armas fundamentais, através das quais os portugueses adquiririam conhecimento e consciência que a prazo os levariam a rejeitarem e revoltarem-se contra um regime que assentava na ignorância e obscurantismo.

Não havia liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de manifestação, à greve, sindical, de partidos políticos e era muito reduzido e controlado o direito de associação. Não existia o direito à Saúde, à proteção social, ao Ensino ou à Habitação e, por isso, um elevado número de portugueses habitava num casebre sem água canalizada, eletricidade ou esgotos.

A polícia política (PIDE) vigiava, controlava e registava a vida dos cidadãos. Interceptava correio, telefones, vigiava contatos, viagens, participação em atividades de lazer, culturais, desportivas e especialmente sociais e políticas. Perseguia, prendia, torturava, encarcerava e assassinava cidadãos. Desde a chegada dos fascistas ao poder, em 28 de Maio de 1926, os que se opuserem e lutaram pela liberdade e a democracia, em particular os comunistas, sofreram a maior repressão e pagaram a sua determinação com assassinatos e milhares de anos de prisão no Forte de Peniche, em Caxias, no Aljube, no Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde) e na Fortaleza de Angra do Heroísmo.

O aparelho de Estado foi adaptado como instrumento repressivo do regime fascista: GNR, PSP, tribunais, inspeções e, em circunstâncias especiais, as próprias Forças Armadas foram utilizadas para reprimir o povo e proteger em permanência os interesses dos ricos e dos caciques locais do regime.

A economia era dominada por sete grandes grupos monopolista (1) e outras tantas famílias: Grupo CUF, Espírito Santo, Champalimaud, Português do Atlântico, Borges & Irmão, Nacional Ultramarino e Fonsecas & Burnay.

Os indicadores econômicos e de nível de vida colocavam Portugal na cauda da Europa, como um país subdesenvolvido, que gastava cerca de 40% do orçamento no esforço de sustentação de Forças Armadas, que guarneciam as frentes da guerra colonial.

A situação econômica e financeira entra em crise nos últimos anos do regime fascista, devido ao seu atraso estrutural, ao forte impacto da chamada crise do petróleo de 1973, a que junta uma fortíssima luta reivindicativa, em especial dos trabalhadores industriais e de alguns setores de serviços (banca, seguros e comércio), mais o esforço imposto pelas necessidades crescentes de financiamento da guerra colonial.

Essa crise e todas as pressões internas e externas fazem surgir as primeiras grandes cisões na base de apoio do poder fascista, provocadas por sectores desiludidos com o “marcelismo”, que não fez a prometida abertura, que consideravam necessária para garantir o futuro dos interesses do Capital. O próprio Exército, cansado e desgastado por 13 anos de guerra devido ao arrastar das guerras coloniais, sem fim à vista ou solução militar possível, até então sempre o último suporte do regime, também se começa a dividir e a contestar as opções da política colonial e corporativa do regime.

Para manter a guerra colonial, ao longo de mais de 13 anos, o regime tinha criado umas Forças Armadas desproporcionais, com mais de 240 mil efetivos só da metrópole, a que juntavam mais umas dezenas de milhar de naturais das colônias, grande parte revezando-se nas frentes de guerra de Angola, Guiné e Moçambique.

A emigração clandestina foi o escape, nos anos sessenta, para mais de um milhão de portugueses procurarem o emprego e condições de vida que não tinham em Portugal. O salto e a deserção são o caminho trilhado por muitos milhares de jovens para fugirem ao serviço militar obrigatório e à mobilização para a guerra.

Os estudantes revoltavam-se e lutavam nas universidades, algumas delas ocupadas pelos chamados gorilas, a mando do Ministério da Educação.

Mais de 200 mil trabalhadores, enfrentando a repressão e as prisões, lutam nas empresas pelo aumento dos salários, redução de horários, férias, descanso semanal, liberdade e democracia através de abaixo-assinados, concentrações, idas às administrações e greves, apesar de proibidas e reprimidas, de que se salientam: Petroquímica, Soc. Industrial de Vila Franca, Gremental, Casa Hipólito, Metro, Cometna, Sorefame, Mague, Timex, UCAL, Philips e Siemens.

É nesta conjuntura efervescente que os militares do Movimento das Forças Armadas (MFA), que se vinham organizando e conspirando desde 1973, concretizam em 25 de Abril de 1974, um golpe militar que derruba o regime, que cai sem oferecer resistência significativa e quase sem tiros e vítimas, exceto as que a PIDE havia de fazer entre os populares concentrados frente à sua sede, na Rua Antonio Maria Cardoso, em Lisboa.

O Povo manifesta-se nas ruas!

Na madrugada e manhã do 25 de Abril, os militares revoltosos aconselhavam o povo, através da rádio, a ficar em casa. O povo, felizmente, não obedeceu e logo nesse dia os populares saltaram para a rua a apoiar os militares na concretização do golpe e na prisão dos mandantes e torcionários fascistas, e depois na abertura das prisões e libertação dos presos políticos.

Na tarde do 25 de Abril, em Lisboa, os cravos vermelhos são oferecidos aos soldados e colocados nos canos das espingardas, nascendo assim um símbolo da Revolução que vai correr o mundo e se irá perpetuar para sempre.

Nos dias seguintes são encerradas as instituições fascistas: Mocidade Portuguesa, Movimento Nacional Feminino, Legião Portuguesa, União Nacional (o partido único autorizado), a PIDE; são controladas a GNR e a PSP (desprestigiadas e muito comprometidas com o regime derrubado), e posto fim à censura e aos tribunais plenários (que julgavam e condenavam os presos políticos), ao mesmo tempo que os fascistas eram expulsos dos vários órgãos e das autarquias locais. Na prática, são exercidas as liberdades fundamentais, de imprensa, de reunião, de manifestação (logo no próprio dia 25 de Abril), à greve, à liberdade política e dos partidos, à liberdade sindical e dos direitos sindicais

Regressam os dirigentes políticos exilados e inicia-se uma frenética atividade social e política, com a nomeação de comissões ad hoc de trabalhadores, moradores, de gestão dos sindicatos, exercendo e consolidando a liberdade e a democracia, e as reivindicações e transformações profundas, que vão nos meses seguintes melhorar muito a qualidade de vida e transformar profundamente Portugal.

Os trabalhadores tomam os sindicatos nacionais (que de nacionais só tinham o nome simbólico do fascismo, visto que eram obrigados por lei a terem âmbito distrital e profissional), até aí controlados pelo regime, que imediatamente se juntam aos que, desde 1969, os trabalhadores tinham conseguido retirar do controle fascista e que constituíram a Intersindical, em 1 de Outubro de 1970.

A Intersindical mobiliza os trabalhadores para apoiar a Liberdade e a Democracia e, naqueles escassos dias, organiza as comemorações do 1º de Maio – Dia Internacional dos Trabalhadores que, pela primeira vez, seria comemorado em liberdade e como feriado nacional.

1º de Maio – Dia Internacional dos Trabalhadores – Feriado Nacional
As manifestações do 1º de Maio assumem a dimensão extraordinária, em centenas de cidades, vilas e aldeias por onde desfilam milhões de trabalhadores, exercendo as liberdades restauradas pelo MFA e reivindicando melhores salários, direitos, redução de horários e condições de trabalho, bem como o fim das guerras coloniais e a independência das colônias.

Os discursos do 1º de Maio, dos dirigentes sindicais e dos dirigentes políticos – Álvaro Cunhal e Mário Soares, convidados para usar da palavra no Estádio do Inatel, nesse dia batizado de 1º Maio –, perante cerca de 500 mil trabalhadores, lançam as linhas programáticas de defesa da liberdade e das reivindicações que vão ser os parâmetros orientadores da ação futura.

Nos meses seguintes há uma mobilização e uma participação extraordinária dos trabalhadores e cidadãos, em todas as iniciativas e lutas, transformando o golpe militar, rápida e gradualmente, em revolução democrática e nacional, malgrado as tentativas da direita em fazer retroceder o processo democrático, com realce para o golpe de Palma Carlos, em 13 de Junho de 1974, o 28 de Setembro, o 11 de Março de 1975 e o 25 de Novembro. Este constitui o momento de viragem da relação de forças, iniciando o processo de retrocesso político, econômico, social e cultural, com os capitalistas e latifundiários, pelas mãos de PS, PSD e CDS-PP a recuperarem as suas posições e privilégios, com os trabalhadores e o povo a perderem direitos e qualidade de vida.

Naqueles meses de 1974 e 75, os trabalhadores e o Povo, em aliança com o MFA, transformaram profundamente Portugal, concretizando muito daquilo que ficou conhecido como as conquistas da revolução de Abril:

Salário Mínimo Nacional (SMN) estabelecido em 3300 escudos, aumentando o salário de mais de 600 mil trabalhadores, medida que foi acompanhada pelo aumento geral dos salários reclamada e conquistada pela luta nas empresas e setores, traduzindo-se numa significativa melhoria dos rendimentos;

Negociação dos contratos coletivos de trabalho (CCT), que asseguraram os direitos fundamentais à generalidade dos trabalhadores portugueses, antes das leis da República, nomeadamente a proibição dos despedimentos sem justa causa, condições de admissão, carreiras profissionais automáticas, férias, feriados, faltas, proteção na maternidade, dos jovens e trabalhadores estudantes, segurança, higiene e saúde, salários, subsídios de férias e décimo terceiro mês;

Controle operário da produção e das empresas para assegurar a produção, o seu funcionamento e salvar os postos de trabalho, contra a sabotagem dos capitalistas;

Nacionalizações dos bancos, seguradoras, grupos econômicos e empresas estratégicas, e a constituição de um setor público da economia, tirando meios e poder dos conspiradores e da reação, e criando uma base sólida de desenvolvimento e resolução de muitos dos atrasos que afetavam Portugal. Só com empresas públicas foi possível levar a eletricidade a quase metade do País, onde faltava, fazer chegar transportes às aldeias e vilas remotas, abrir estradas, colocar telefones, rádio e televisão, recolher as produções de cereais e a produção agropecuária, garantir o abastecimento de combustíveis e produtos essenciais, fazer chegar o progresso a todos os cantos de Portugal;

Reforma Agrária, sob a consigna “a terra a quem trabalha”, avança para fazer cumprir o direito ao trabalho e garantir a produção agrícola e agropecuária, essencial ao abastecimento público. Primeiro em Beja, e depois por todo o Alentejo e Ribatejo, os trabalhadores agrícolas ocuparam centenas de grandes fazendas, muitas há muito abandonadas e desorganizadas, constroem unidades coletivas de produção (UCP) e cooperativas que empregam em permanência milhares de trabalhadores, diversificam e aumentam a produção, criam creches, cooperativas de consumo e dinamizam a atividade econômica das regiões, travando a desertificação e o empobrecimento;

Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em finais de 1974, as organizações sindicais que participavam nos órgãos de gestão das administrações regionais de saúde, em cooperação com os serviços do Ministério da Saúde, empreenderam a integração e construção do SNS, para dar resposta às necessidades urgentes de cuidados de saúde dos trabalhadores e das populações. O Serviço Médico à Periferia, instituído em 1975, deu um contributo decisivo ao levar jovens médicos às vilas e aldeias onde muitos portugueses nunca os tinham visto.

A Segurança Social, também gerida com a participação de representantes sindicais, foi integrada e estruturada, foi promovida a inscrição de mais de um milhão de trabalhadores que estavam desprotegidos, e foram aumentados e generalizados os direitos e proteção aos contribuintes e suas famílias. As reformas são aumentadas e generalizado o abono de família;

O Ensino público universal e gratuito foi generalizado e o seu acesso democratizado, construídas escolas e universidades, que passaram a ser, pela primeira vez, acessíveis aos filhos dos trabalhadores;

Habitação passou a ser uma exigência, porque faltavam casas com condições de salubridade, água, saneamento e eletricidade, a preços comportáveis;

Transportes públicos. Foi criada uma rede de transportes públicos que cobria Portugal: CP, Rodoviária Nacional, TAP, Transtejo, Carris, Metro e outros asseguravam com eficácia o serviço público;

Acabou a guerra colonial e Portugal reconheceu a independência dos novos países de Língua Portuguesa;

Foram estabelecidas relações com todos os países do mundo e Portugal saiu do isolamento internacional a que estava até então condenado, passando a respeitar os compromissos e os acordos internacionais;

A economia e as finanças ultrapassaram a crise motivada pelo choque petrolífero e o esgotamento da guerra colonial, aguentando a sabotagem dos capitalistas, o impacto da integração de mais 500 mil portugueses retornados das ex-colônias e a desmobilização de dezenas de milhar de militares, porque cresceu o rendimento dos trabalhadores que dinamizou o mercado interno e o emprego.

Os 40 anos de política de direita que se seguiram, brutalmente empenhada em destruir tudo o que cheire a Abril, fizeram muitos males, destruíram conquistas históricas como a Reforma Agrária, privatizaram bancos, seguradoras, empresas estratégicas e todo o setor público da economia, para encher os bolsos dos capitalistas nacionais e estrangeiros. Promoveram a corrupção, a precariedade e o desemprego, limitaram as liberdades e os direitos dos trabalhadores e cidadãos, reduziram salários, desnataram o SNS, a Segurança Social pública e universal, o Ensino e a Escola Pública, e degradaram a democracia.

O 25 de Abril de 1974 será para sempre uma data maior na História de Portugal e a epopeia das conquistas de Abril ficará para sempre gravada na memória coletiva!

Algumas das suas transformações e conquistas são tão profundas e universais que, 44 anos depois, continuam a resistir a sucessivas ofensivas, porque os trabalhadores e o povo as defendem e por elas lutam todos os dias.

1. Álvaro Cunhal, A revolução portuguesa, o passado e o futuro (1994), Edições Avante!