Alemanha adentro, perplexidade e mal-estar com o mundo afora

Dois filmes alemães que chegam aos cinemas brasileiros refletem de modos diferentes e até contrastantes sobre a complexa relação da Alemanha com o mundo contemporâneo. Dito assim, parece que se trata de dois painéis sociológicos ou políticos, mas não: são histórias concentradas na trajetória de uns poucos personagens comuns, ou quase.

Por José Geraldo Couto*

Em pedaços - filme - Divulgação

“Em pedaços”, de Fatih Akin, e “Western”, de Valeska Grisebach, podem ser vistos como opostos e complementares, tanto em seus temas como na sua forma. Mas vamos a eles.

No filme de Akin, cineasta hamburguês de ascendência turca notabilizado pelo tema da imigração, há um acontecimento traumático em torno do qual se desenvolvem todos os desdobramentos da narrativa, seja no plano da ação, da psicologia, da política ou da moral. É a morte, num atentado à bomba, do marido e do filho da protagonista, a germaníssima Katja Sekerci (Diane Kruger).

Terreno movediço

O marido morto (Numan Acar) era um ex-traficante curdo e a explosão ocorreu num bairro turco de Hamburgo, por isso todas as hipóteses para a autoria do crime são cogitadas: máfia turca, fundamentalistas muçulmanos, gangues de traficantes, criminosos do leste europeu, grupos neonazistas. Desde o início Katja não tem dúvidas de que estes últimos são os culpados.

Com notável segurança narrativa, Fatih Akin desenvolve ao mesmo tempo, de forma imbricada, o resvalamento de Katja em seu abismo interior e a sua ação externa em busca de vingança, com uma atitude que em vários momentos parece adquirir um aspecto de hipnose ou sonambulismo.

Uma mulher que passou pelo que ela passou é capaz de tudo – e o filme explora muito bem essa imprevisibilidade, bem como o terreno movediço em que Katja se move. E não foi por acaso que Diane Kruger ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes.

A narrativa é dividida em três capítulos bem distintos: “Família”, “Justiça” e “O mar”. Cada um se concentra num subtema específico e é marcado por um ritmo, uma tensão, um espaço cênico e uma estratégia expositiva diferente. Na primeira parte, de andamento mais rápido e picotado, com abundância de câmera na mão, mostra-se o crime, a crise pessoal e familiar de Katja, a investigação policial. O segundo capítulo se passa quase inteiramente na corte onde é julgado o jovem casal de suspeitos. É um drama de tribunal enxuto, estrangulado, sem os arroubos de oratória e os lances catárticos a que o cinemão americano nos habituou.

Nessas duas primeiras partes, vemos a Alemanha ultracivilizada (ao menos na superfície) e suas instituições tentando absorver e ordenar o caldeirão multiétnico da cidade de Hamburgo, com seus atritos culturais e políticos.

Do terceiro capítulo não se pode contar muita coisa, sob pena de estragar surpresas. Basta dizer que se passa num vilarejo grego à beira-mar e que nele o filme de certa forma ascende à categoria da tragédia moral, considerando que os dois primeiros se referiam ao drama pessoal e ao contexto histórico-social. Um aspecto não anula o outro, mas antes o potencializa. Fatih Akin explora a seu modo as possibilidades de fabulação e reflexão contidas num acontecimento brutal. E de acontecimentos brutais nós, brasileiros, tivemos uma overdose nos últimos dias.

Trailer de Em Pedaços: 

Western

Se “Em pedaço”s aborda a situação literalmente explosiva suscitada pela afluência de todas as culturas do mundo ao centro de riqueza e poder que é a Alemanha contemporânea, num movimento centrípeto que acaba por se concentrar no corpo e no espírito da protagonista, Western opera na direção contrária, ao retratar um grupo de operários alemães deslocados para uma região rural e atrasada da Bulgária para a construção de uma hidrelétrica.

Nesse movimento do centro para a periferia (no sentido geopolítico, econômico, cultural) não há um evento central – a rigor, quase não há eventos – e o que predomina é a observação aparentemente dispersa de situações ensejadas por esse punhado de homens “fora do lugar”: as tentativas de conhecer e dominar o terreno natural, os esboços desajeitados de entendimento e interação com a população local, as fricções no interior do próprio grupo.

Não deixa de haver uma tensão subjacente (e crescente), mas ela quase se dilui nos planos abertos de exposição da natureza selvagem, nos longos silêncios, nos diálogos truncados por conta da barreira da língua. Há também um personagem que se destaca dos outros, o operário Meinhard (Meinhard Neumann, metalúrgico de profissão, em sua única atuação no cinema), uma espécie de caubói solitário que destoa do comportamento machista e arrogante de seus companheiros. Mas mesmo ele, que se diz um ex-legionário com passagem pelo Afeganistão, mantém-se impenetrável aos olhos do público, impedindo uma identificação emotiva “clássica”.

Trailer de Western: 

Nacionalismo ironizado

O nacionalismo alemão, simbolizado pela bandeira fincada no acampamento operário e mencionado indiretamente em algumas falas sobre a presença germânica na região durante a Segunda Guerra, é ironizado e esvaziado pela estupidez dos personagens: de certo modo, ali eles é que são os bárbaros. Há talvez uma referência mais sutil. Ao cavalgar em pelo um corcel branco por um bosque, Meinhard lembra uma versão abastardada e prosaica do herói mitológico Siegfried, tal como aparece no clássico de Fritz Lang Os nibelungos.

O título Western é, evidentemente, irônico, aludindo ao gênero cinematográfico norte-americano, mas também à condição dos protagonistas, “ocidentais” aos olhos dos aldeões búlgaros.

Esgarçamento da narrativa, deslocamento do olhar, opacidade dos personagens, ausência de eventos de impacto dramático: em tudo o filme de Valeska Grisebach contrasta com “Em pedaços”. Mas ambos, vistos em conjunto, expressam perplexidade, incômodo ou mal-estar em face das relações do povo alemão com o restante da humanidade.