Intervenção no Rio: Os militares não são o alvo

"Com essa manobra irresponsável e politiqueira o governo Temer espera continuar a respirar até o fim dos seus dias, quiçá ganhando pontos com a ajuda da mídia fâmula e de uma classe média desorientada. (…) Muitos poderão sair chamuscados desse incêndio planejado, inclusive as próprias forças armadas, utilizadas como joguete nas mãos de um governo sem legitimidade e com claros interesses antinacionais".

Cristiano Capovilla*

Villas Bôas - Agência Senado - Agência Senado

A intervenção civil-militar promovida pelo governo Temer com o apoio da Rede Globo revela-se um ato irresponsável e demagógico. Ao brincar com algo extremamente sério, a intervenção expõe a essência reacionária por trás da aparente preocupação com a segurança pública. Senão vejamos:
Os motivos ocultos da intervenção aprovada por decreto, a toque de caixa, sem planejamento nem consulta prévia aos conselhos de Defesa Nacional e da República, como requer uma ação dessa ordem, começam a ficar claros. Tudo indica que essa pirotecnia está sendo usada como subterfúgio para dar algum sentido político-programático a um governo sem pé nem cabeça, desmoralizado e repudiado pelo povo. Até então, o governo Temer só tinha significado quando prometia reformas para atender os grandes interesses do mercado. Agora, para desviar a atenção da derrota acachapante que sofreria na votação da reforma da previdência social, quer “solucionar” o problema da segurança pública com uma canetada.

Mesmo depois de milhões de reais liberados em propaganda, emendas parlamentares e de ter transformado Câmara e Senado num verdadeiro mercado de miudezas, a desfiguração da previdência social não seria aprovada, tamanha era sua rejeição entre os trabalhadores e na sociedade brasileira. Se votasse e perdesse, avaliaram, seria mais que uma derrota – seria o fim antecipado do manquitola governo Temer. Por conseguinte, optou-se pela mudança de agenda, trazendo à baila uma pauta de grande apelo popular: a cruzada contra o terror da criminalidade, através de uma intervenção militar no Rio de janeiro! Uma forma engenhosa e irresponsável de “jogar com a plateia” – com a devida ajuda da Rede globo, é claro! – e dar novo sentido para a existência do governo. Politicagem rasteira e desatinada, mas que reafirma o compromisso do governo com os setores mais conservadores do país, com suas políticas repressivas e de criminalização da pobreza.

Isso mostra claramente os perigos a que a república está submetida ao ser comandada por um séquito de imprudentes. Além das consequências imprevisíveis no âmbito social e da segurança pública, com graves efeitos para os moradores de bem das áreas afetadas, as próprias instituições das forças armadas são vítima desse joguete indevido. Desde o fim da Guerra Fria e a ascensão definitiva da hegemonia do capital financeiro que o neoliberalismo propaga o apequenamento dos Estados nacionais através do receituário de privatizações, abertura irrestrita das fronteiras para capitais, mercadorias e serviços, substituição das instituições locais por acordos transnacionais e mudança do papel constitucional das forças armadas para uma espécie de polícia nacional.

A função precípua de defesa da nação e de seus interesses deve ser reformada, segundo os preceitos neoliberais, para uma ação exclusivamente interna, onde o Exército cuidaria de combater o tráfico de drogas, a Marinha viraria uma guarda costeira e a aeronáutica limitar-se-ia a gerenciar os serviços de utilização do espaço aéreo nacional. Nada de submarino nuclear, aviões a jato de última geração ou foguetes de precisão. Nada de dissuasão ou projeção de poder. Tudo isso são gastos e o dinheiro deve ser usado para pagar os serviços da dívida pública, alimentando a jogatina e a especulação dos rentistas transnacionais. Como podemos depreender de estudos que perguntam Armed forces… for what? [Forças armadas… para quê?] – amparado por entidades como Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) de Londres -, este é o papel reservado para as forças armadas dos países periféricos na nova ordem mundial. Se a função das forças armadas é a de ser uma espécie de entidade policial, então a escolha das capacidades militares deve cuidar de circunscrevê-las a esse desiderato. Virarão, assim, por uma determinação geopolítica, uma espécie de guarda nacional, sem função estratégica e inócua na defesa de inimigos externos.

Isso tudo parece um exagero? Vamos ver: as forças armadas são chamadas para combater traficantes nas favelas. De quem é essa função, senão da polícia? Alguns podem contra-argumentar: mas a situação estava fora do controle! Quem disse isso? Os órgãos de inteligência ou a rede Globo? Nenhum relatório de inteligência afirma que a situação era descontrolada e que era necessária a intervenção. Na verdade, dados publicados no jornal O Estado de S. Paulo revelam que houve menos violência no carnaval do Rio este ano do que no ano passado!

A falta de planejamento das ações revela-se na surpresa com a qual o alto comando das forças armadas foi pego. Tudo ainda está por ser feito. Ao invés de uma ação emanada dos fluxos de informação e de tomada de decisão entre os componentes institucionais que alimentam e ordenam ações militares, tudo indica que a defesa ainda está levantando a dimensão da tarefa. Um trovão num céu azul!

Recentemente o próprio comandante do exército, General Villas-Boas, classificou as intervenções na segurança pública como um recurso “desgastante e inócuo”. Por que não escutar a voz do comandante militar? A prova maior de que as forças armadas estão diminuídas nessa ação é o rebaixamento do seu status constitucional e a desclassificação de um quadro como o General Walter Souza Braga Netto, que, de comandante de uma das principais organizações militares do país, o Comando Militar do Leste, assume condição análoga à de um secretário de segurança estadual. Será esta uma tendência dos novos tempos?

A verdade é que ainda não foi aplicado um programa realista para tratar dos sérios problemas da segurança pública do Rio de Janeiro. O combate ao crime organizado, notadamente o tráfico de drogas e de armas, além da redução do número de homicídios, roubos e combate a corrupção, requer inteligência e articulação entre as políticas de prevenção e repressão. Deve ser um trabalho sistemático e contínuo, aliado a uma forte presença do Estado nas áreas de saúde, educação, infraestrutura e assistência social. Experiências de sucesso em outros estados e países devem ser estudadas e, se for o caso, replicadas. Requer acima de tudo vontade política, bom uso dos recursos e diálogo com as comunidades. E é exatamente isso que não temos.

Com essa manobra irresponsável e politiqueira o governo Temer espera continuar a respirar até o fim dos seus dias, quiçá ganhando pontos com a ajuda da mídia fâmula e de uma classe média desorientada. Mas, como todo sonho sempre se separa da realidade no final, podemos estar assistindo a um dos mais baixos episódios políticos desde a instauração da nova república. Muitos poderão sair chamuscados desse incêndio planejado, inclusive as próprias forças armadas, utilizadas como joguete nas mãos de um governo sem legitimidade e com claros interesses antinacionais. Os progressistas, democratas e nacionalistas devem se unir para construir um programa de salvação nacional e encerrar essa triste página da história do Brasil. O alvo não são as forças armadas, mas o incongruente desgoverno Temer!

*Cristiano Capovilla é professor de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão e diretor da Fundação Maurício Grabois.