Grupos de pressão e o pré-sal: antecedentes da crise

Do roubo de um contêiner da Petrobras às promessas de José Serra à Chevron, sinais dos interesses estrangeiros nas reservas de petróleo do Brasil.

Por William Nozaki*

Serra e a Chevron - Wilson Dias/Agência Brasil

Passada uma década da descoberta do pré-sal e um ano do governo Michel Temer são muitas as evidências de que a instabilidade política provocada pelo impeachment e as mudanças nos marcos de produção e exploração do petróleo conformam uma trama complexa de inter-relações entre distintos grupos de pressão, internacionais e nacionais, a envolver tanto interesses estratégicos e empresariais de longo prazo quanto oportunismos políticos e financeiros de curto prazo.

O desvelamento completo das origens e desdobramentos da atual crise será tarefa difícil para os historiadores do futuro. Entretanto, ainda que sem o devido distanciamento e a devida frieza que só o tempo histórico trazem, faz-se importante, ainda que no calor da hora, elencar alguns acontecimentos da última década que talvez estejam subestimados e que certamente ainda são pouco explicados, mas que marcam possivelmente uma estreita e nebulosa relação entre o calendário da descoberta do pré-sal e o calendário de coesão das forças políticas que protagonizaram o impeachment de Dilma Rousseff. Vejamos os indícios e organizemos as peças desse jogo, deixando para o leitor a tarefa de encontrar os fios da meada que ligam esses pontos.

Talvez o primeiro capítulo para se fazer a reconstrução da atual crise por que passa o País remonte a um acontecimento pouco lembrado atualmente: em janeiro de 2008, um ano após o anúncio da descoberta do pré-sal, a Petrobras foi vítima do furto de um de seus contêineres. Lá estavam quatro notebooks, dois HDs e um conjunto de informações sigilosas sobre a exploração de petróleo na bacia de Santos. O container deveria sair de Santos (SP) em direção à Macaé (RJ). Sua origem e seu destino eram justamente cidades onde se encontram dois dos maiores campos do pré-sal.

Na ocasião, a Polícia Federal definiu uma linha única de investigação: a hipótese de espionagem industrial, dado que não se furtou todo o conteúdo do container, apenas aqueles itens nos quais havia informações sigilosas. Foram investigadas as duas empresas responsáveis pelo transporte, a norte-americana Halliburton e a brasileira Transmagno. Subitamente a PF mudou a linha de investigação e passou a tratar o caso como furto comum. Prendeu quatro vigilantes do terminal portuário.

O segundo capítulo dessa história remonta ao ano seguinte. Em outubro de 2009 foi realizada uma grande conferência no Rio de Janeiro a reunir integrantes da PF, do MP e do Judiciário com autoridades do governo norte-americano a fim de debater procedimentos e métodos de combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo.

Esse evento contou com a participação ativa do até então desconhecido juiz Sérgio Moro, no âmbito de uma articulação denominada Bridge Project (Projeto Pontes). Vale lembrar também que o evento foi aberto pela embaixadora norte-americana Shari Villarosa, especialista em gestão de crises políticas que envolvam a ação de movimentos sociais, tendo atuado na repressão de grupos organizados em Mianmar. Seria um prenúncio ou uma prevenção contras as manifestações que mais tarde se insurgiriam no País entre 2013 e 2015?

O caso veio à tona com o vazamento feito pela Wikileaks, no qual também se pode verificar que Moro foi o único juiz de primeira instância citado nominalmente na ata do encontro. Alguns anos depois, seu método de condução da Operação Lava Jato trataria de criar, de forma simplista e equivocada, uma associação direta entre os pacotes de investimentos da Petrobras no pré-sal e os desvios provocados pelos casos de corrupção.

O terceiro capítulo, por seu turno, remete à disputa eleitoral ocorrida em 2010 e teve como principais candidatos o tucano José Serra e o petista Dilma Rousseff. Uma vez mais, um vazamento posterior do Wikileaks revelou que naquela ocasião o candidato tucano trocou um conjunto de telegramas com uma alta executiva da petrolífera norte-americana Chevron, a mesma empresa que desistiu do projeto de exploração do pré-sal em virtude dos elevados custos de exploração no primeiro poço, tratando da importância de se fazer mudanças mais drásticas nos marcos de exploração e produção do pré-sal.

Vale lembrar: no fim daquele ano, em dezembro de 2010, o governo Lula havia conseguido aprovar o regime de partilha para a exploração do pré-sal, garantindo a atuação da Petrobras como operadora única e partícipe prioritária dos leilões. Não por acaso, o projeto que alterou a participação da Petrobras nas camadas do pré-sal foi originalmente concebido por Serra, que antes mesmo de ganhar as eleições provavelmente se comprometera com pressões e interesses não necessariamente nacionais, como deixam claros os telegramas vazados.

Além disso, não parece ser uma hipótese desprovida de sentido desconfiar da nomeação de Serra para o Ministério das Relações Exteriores do governo Temer, dada a sua derrota eleitoral. Talvez esse tenha sido o melhor espaço para o atual senador cumprir as promessas que antes havia realizado para as petrolíferas estrangeiras.

O quarto capítulo desse rascunho histórico-conjuntural se dá entre 2011 e 2012. Nesse momento a mídia começou a noticiar de forma mais sistemática as “frustrações do mercado” com o desempenho da Petrobras. O argumento pró-mercado se concentrava na reclamação de que a estatal não bateria suas metas de produção e lucro. A gestão da companhia alertava para o fato de que o grande pacote de investimentos, da ordem de 55 bilhões de dólares exigia um tempo de maturação até a produção aumentar de forma crescente e exponencial, como veio a acontecer pouco tempo depois graças ao sucesso da produção do pré-sal sal e da redução de seus custos de extração.

Nesse mesmo ano ocorre um redirecionamento estratégico da política energética de vários países. Os EUA, na sua política de energia, detalhada no documento governamental Blue Print for a Secure Energy, coloca o Brasil como um ator central. Em três das sete diretrizes estratégicas elencadas no documento, refere-se ao Brasil como um país cujas tecnologias nas áreas do pré-sal, biocombustíveis e hidrocarbonetos não convencionais precisam ser observadas com cuidado. Não por acaso, ainda em 2011 Barack Obama visitou as instalações da Petrobras, repetindo o gesto que havia sido realizado no ano da descoberta do pré-sal, em 2007, por George Bush.

Na esteira desses movimentos estratégicos, as empresas de outros países começaram a realizar aproximações com setores políticos a fim de se apropriar da descoberta do pré-sal. Em 2011, a chinesa CNPC fez uma visita ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, para investir na cadeia de petróleo do Brasil, tendo em vista as perspectivas de investimento de longo prazo na Bacia de Santos. Não apenas a China e os EUA. Também há outros players interessados nessa nova fronteira, como França e Noruega, que colocaram no centro de suas políticas energéticas a entrada no segmento do pré-sal brasileiro.

Entretanto, ao que parece, uma expressiva fatia do empresariado nacional estava menos preocupada com os investimentos de longo prazo e mais com seus ganhos de aplicações financeiras no curto prazo. Não é exagero afirmar que nesse momento boa parte da mídia nacional atuou como porta-voz das operadoras estrangeiras interessadas em ingressar no pré-sal brasileiro.

Em 2013, toma forma o quinto capítulo dessa história conturbada: o consultor de informática da NSA (Agência Nacional de Segurança, sigla em inglês), Edward Snowden, revelou documentos que mostravam como a presidenta Dilma Rousseff, ministros e altos dirigentes do governo, assim como a rede privada de computadores da Petrobras eram alvo de alta espionagem, uma vez mais ficava claro o interesse norte-americano sobre a tecnologia a envolver a exploração em águas profundas.

Nesse mesmo ano, após os vazamentos, o governo norte-americano decidiu pela troca de sua embaixadora no Brasil, nomeando Liliana Ayalde, conhecida por ter atuado no Paraguai participando ativamente das movimentações que derrubaram o presidente Fernando Lugo, intensificando a reversão liberal-conservadora na América Latina.

Além dessa troca, em outubro de 2013 foi realizado o primeiro leilão do pré-sal sob o regime de partilha. Como forma de pressão contra o protagonismo da Petrobras, as petrolíferas norte-americanas (ExxonMobil e Chevron) e inglesas (BP e BG) boicotaram o leilão. Mais ainda: neste período começa a tomar corpo aquela operação que tomaria conta do noticiário nacional.

Em março de 2014, é deflagrada a primeira fase ofensiva da Lava Jato e se inicia a criminalização do projeto de desenvolvimento baseado no ativismo estatal e na centralidade da Petrobras como polo para o avanço industrial e tecnológico do País.

É incontestável o mérito da pauta de combate à corrupção, entretanto os métodos utilizados pela Operação Lava Jato são integralmente contestáveis, pois se valem de procedimentos seletivos, perseguições indevidas, além da espetacularização de suas ações, tudo ancorado na problemática premissa de que o Estado seria o império do vício enquanto o mercado caberia no reino da virtude.

É curioso notar: o empenho que a Operação Lava Jato desde seu início dedica à busca de conflitos de interesse e tráficos de influência envolvendo a Petrobras nem de longe se compara à negligência com que ela trata as empresas estrangeiras.

O resultado tem sido a destruição da economia nacional em favor da autopromoção de uma casta jurídica de atuação, no mínimo, duvidosa e de um grupo político-partidário inequivocamente corrupto, direta ou indiretamente ambos concorrem para a aceleração da entrada de atores estrangeiros na exploração e produção do pré-sal. Ainda em novembro deste mesmo ano, o senador Serra, enfim, apresentou a redação final de seu projeto de emenda constitucional para a mudança nos marcos de exploração e produção do pré-sal, subtraindo o papel da Petrobras.

O próprio governo reeleito de Dilma Rousseff, dardejado pelo clima de polarização que assume a campanha presidencial e marcado pelas crescentes pressões de grupos financeiros internacionais e nacionais, empreende de forma equivocada e inacabada um giro em direção à desaceleração do ativismo estatal, e, à oposição declarada de parcela do empresariado vai se somar a insatisfação de parte da própria base aliada, intensificando o clima de crise conflagrada.

Os passos que daí se seguiram, como todos sabemos, nos conduziram não ao fim de um período de instabilidade, mas ao início de uma crise ainda mais profunda que atravessou o ano de 2015 e culminou na conformação do governo Temer em 2016, nos trazendo ao desmonte da Petrobras e à entrega do pré-sal nos leilões em curso no presente ano de 2017, com as rodadas de licitação do pré-sal realizadas no próximo dia 27 de outubro.

É importante destacar: a confluência de interesses difusos do capital internacional, da elite político-partidária, da casta jurídico-policial, e da mídia oligopólico-espetacularizada convergiram para o mesmo horizonte, tais atores não assistiram a esse processo apenas como títeres coadjuvantes dos interesses internacionais, mas se valeram desse momento para impor, como protagonistas agindo ao arrepio das urnas, os seus interesses corporativos, nos conduzindo até o problemático estado de coisas em que o País se encontra.

A descoberta e a exploração do pré-sal são resultado de investimentos da Petrobras que propiciaram o desbravamento de fronteiras geológicas, de engenharia e tecnológicas. Neste ano, 48% do petróleo produzido no País é oriundo de bacias na área do pré-sal. Além disso, os campos do pré-sal tem maior potencial de produtividade e menor custo de extração, são fundamentais para a autossuficiência energética nacional e para a construção de uma transição energética sustentável.

Estima-se cerca de 100 bilhões de barris recuperáveis em campos do pré-sal. Esse número coloca o País entre os dez maiores produtores de petróleo do mundo, o que poderia fazer do Brasil um grande player no tabuleiro geopolítico e geoeconômico global, além de criar condições para a construção de uma nova estratégia de desenvolvimento nacional. Entretanto, a diretriz do atual governo caminha na contramão dessa perspectiva.

Para o biênio 2017-2018, a meta da Petrobras é se desfazer de ativos avaliados em 21 bilhões de dólares. Ao que tudo indica, o pré-sal é o elemento que mais tem despertado o interesse e o apetite de investidores internacionais, todos eles a buscar os recursos do pré-sal e se apropriar da renda petrolífera.

Segundo a ANP, as empresas interessadas e habilitadas a participar dos leilões do pré-sal que acontecem na próxima semana sob o novo modelo de concessão, com exceção da Petrobras, são todas estrangeiras: ExxonMobil (EUA), Petrogal (Portugal), Petronas (Malásia), Repsol (Espanha), Shell e BP (Reino Unido), Statoil (Noruega), Total (França), CNODC (China) e QPI (Catar). Mais do que uma desestatização estamos diante de um processo de desnacionalização de um bem estratégico para o País.

Em momentos históricos decisivos para a estratégia de desenvolvimento nacional, a elite parece sempre ceder à sua cômoda posição de “sócia subalterna” do capitalismo central e das grandes petrolíferas estrangeiras, uma posição favorável para sua acumulação privada, mas muitas vezes danosa para o projeto de desenvolvimento do País, que, a propósito, de tempos em tempos se vê sabotado diante de grupos de pressão cujos interesses pessoais, corporativos, paroquiais e muitas vezes provincianos acabam a levar à instabilidade das nossas instituições políticas e à entrega do nosso patrimônio nacional.

* Professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros (GEEP-FUP). O autor agradece a leitura atenta e as sugestões dos demais integrantes do grupo