U2 canta o mundo em que ainda se luta contra a censura e por igualdade

Cerca de 72 mil pessoas entraram numa máquina do tempo, nesta quinta (20), em São Paulo, na primeira apresentação da turnê do U2 que celebra 30 anos do álbum The Joshua Tree. O clima de nostalgia, com amigos não tão jovens abraçados e cantando em coro, disputou espaço com a sensação de que o presente ainda tem muito de passado. Continuamos sem acreditar nas notícias de hoje, desse tempo em que a banda irlandesa ainda precisa protestar contra a censura e em defesa das mulheres.

U2 contra a censura

Por Joana Rozowykwiat

Quando os primeiros acordes de Sunday Bloody Sunday invadiram o estádio do Morumbi, encheram de energia uma plateia que havia recebido o britânico Noel Gallagher – responsável pela abertura da noite – de forma pouco efusiva. Situados na extensão do palco que invadia a pista, Bono e sua equipe iniciaram o show sem muitos recursos visuais: era apenas música. Os domingos continuam sangrentos e seguimos cantando suas canções.

Na primeira parte da apresentação, sucessos de fora do álbum homenageado, como Bad e Pride. Em seguida, um gigantesco e hipnotizante telão se iluminou para marcar o início de um novo bloco, no qual The Joshua Tree foi executado na ordem original – como se a ideia fosse ampliar a experiência de ouvi-lo, agora coletivamente, ao vivo e com muitos, muitos recursos visuais.

Para quem estava na arquibancada, longe daqueles músicos-formiguinhas no palco, era quase como uma sessão de cinema com concerto. Arrebatador, o telão de alta definição misturava imagens ao vivo dos músicos, com efeitos e lindas cenas gravadas. A princípio, uma espécie de viagem imagética pelos Estados Unidos, país celebrado em The Joshua Tree em toda a sua complexidade e contradição.

Músicas com letras engajadas ou permeadas por um sentimento de busca espiritual eram acompanhadas por belas paisagens desérticas, diferentes daquelas vistas em geral nos filmes hollywoodianos. Personagens anônimos que vestem capacetes. Uma banda de metais que parece dividir o palco com os irlandeses. Muitas bandeiras.

O ativismo do U2 esteve presente durante boa parte do show. Embora não tenha feito crítica direta a Donald Trump, a banda exibiu imagens antigas em que um personagem homônimo do presidente dos EUA fala sobre a necessidade de construir um muro de proteção. Em outro trecho, enquanto a banda tocava Mothers of the disappeared, o telão mostrou várias mulheres segurando velas, que iam se apagando pouco a pouco, uma referência aos filhos que perderam.

Bons de marketing, os integrantes da banda adaptaram sua atitude militante ao cenário brasileiro, mas evitando maiores polêmicas. Assim, lá pela metade do show, o telão projetou um close das costas do baterista Larry Mullen Jr, em cuja camisa estava escrito “censura nunca mais” – um apoio à campanha contra o crescente conservadorismo verde-amarelo.

As mulheres, contudo, talvez tenham sido o foco do show, que retratou personalidades femininas importantes da história do mundo no enorme painel iluminado. As personagens iam de Michele Obama a Madre Teresa, passando pelas brasileiras Maria da Penha, Tarsila do Amaral, Irmã Dulce e Taís Araújo. A banda desviou de controvérsias. A presidente do Chile, Michele Bachelet, por exemplo, estava representada; a ex-líder brasileira, Dilma Rousseff, não.

No Brasil dos retrocessos, Bono discursou sobre direitos civis e dedicou música para as mulheres “que insistem e resistem”. Num momento em que recursos para a saúde são cortados no país, falou sobre a aids. Diante de uma plateia que tem assistido passiva ao ataque a conquistas sociais e garantias constitucionais, defendeu, com frases feitas, que é possível construir um mundo melhor – esse beautiful day que nunca chega. Ainda bem que havia todo um aparato tecnológico para nos lembrar que não, não estávamos nos anos 1980.